Casa Grande, Tereza e Frederico

quinta-feira, 11 de agosto de 2011



A triste escadaria direcionava à porta velha do terceiro quarto da Casa Grande. Eram degraus desnivelados, uns maiores que os outros, cúmplices de talvez um crime mal resolvido. As marcas de sangue respingados na escada deixaram eternas provas invioláveis na pintura arcaica do século XV.  Subindo, no primeiro andar, um extenso corredor, cujos quartos enfileiravam-se ao lado direito e, em frente de quem sobe a escadaria, uma janela medieval, cujas cortinas desbotadas, sujas de rancor e desprezo.  As lajotas do piso do corredor eram corroídas pelos ferozes cupins e as maçanetas das outras portas enferrujadas pelo desprezo do abandono infame, agora não havia ninguém que quisesse habitar naquela Casa Grande, apenas Tereza, ou melhor, Mariza Tereza de Alburqueque. Uma senhora modestamente solitária, aliás, apenas o cachorrinho – Frederico – a fazia companhia com estressantes latidos, insinuando-lhe uma ânsia de libertação do sujo e malacabado canil.
- Cala boca, trem ruim nojento!
Sem sucesso, tentou limpar as mãos no avental podre de gordura que só o lavava nos finais de semana, sem direito de colocá-lo na quibôa. Entrou na cozinha, de lá do fogão, mexendo a gosma de farinha com água, espreitava Frederico, vendo-o se coçando e lambendo as ousadias.
- Cachorro desgraçado, nem sei ainda porque não te dei fim, seus dias estão contados, diabo do meu ódio! – Rabugentamente resmungava.
Da cozinha ao banheiro, não havia muita distância e olfativamente se discernia o fétido esgoto que se exalava da latrina. Na cozinha, um fogão, uma geladeira que servia de armário, e muitas moscas mantendo a sobrevivência, pousando nos restos de comida no canto da parede da porta do quintal. A sala era grande, e, ao mesmo tempo, se diminuía diariamente após que tornara depósitos de reciclagens e papelões e latinas de alumínio e sofás recauchutados e empilhados e lascados e os pneus atrás da emperrada porta marrom. Os quartos, já mencionados, situavam-se no primeiro andar – três apenas. O primeiro de casal, sem nada, sem sonhos, inabitável; o segundo, uma cama magricela, lastros quebrados e um criado mudo ausente de gavetas; o último, ficava trancado.
D. Tereza lavou a panela e os dois pratos – o dela e de Frederico – varreu a cozinha, bateu com o pé no chão, matando a infeliz barata cortejada há dias, limpou o solado da sandália na quina da pedra de Mármore da porta do quintal, quebrou a sandália. Descalça e com o lenço na cabeça, a saia cobria as chagas mal cicatrizadas das pernas, ora tirando lasquinhas das feridas, ora fazendo minar, ora infeccionando a raiva rotineira da Velha doca, D. Tereza.
Frederico, cachorro pútrido, sentia o sofrimento de D. Tereza, mas apenas lambia as partes íntimas e, com as unhas, coçava ferindo a orelha. Latia, latia, latia, e as grades do canil ficavam mais largas para passar. Tentava, tentava , tentava: botava a cabeça por baixo da greta, latia, tirava, latia, e pululava, rodopiando no pequeno espaço que tinha por direito, derrubando, se melando nos estercos e sem sucesso, foi para o canto dormir frustradamente.
- A prisão que você, miserável, quer se libertar, é mais fácil que a minha, que me encarcera no medo de viver!
Frederico, deitado dissimuladamente, sem balançar o rabo, olhava para Tereza na porta do quintal, invejando aquela gorda Senhora, fechava e abria e fechava lentamente os olhos e dormiu, sonhando com sua fuga pelas gretas.
D. Tereza fechou a porta do quintal e das possibilidades de fuga de Frederico - o pútrido vira-lata.

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