Cidade Alta via Cidade Baixa

quinta-feira, 25 de agosto de 2011




            Deita o sol triunfantemente sobre o mar calmo, um olhar distante e afogado em lágrimas de desprezo, sentado pensa vorazmente sobre si, a vida, os outros, depois, em nada. Os gatos eroticamente miam debaixo do banco acimentado, Castro Alves sempre com uma das mãos estendidas, carros galopam e sobem e descem a Rua Chile – como de costume do horário; mas o foco dele – o pôr do Sol. A majestade reina durante o dia e se submete a repousar em extensos lençóis azuis em seu ocaso, enquanto desponta timidamente o luar com conotação de solidão e melancolia.  Passa o braço direito nas cavidades nasais, enxugando aquele quase viscoso líquido misturado ao ódio e amor, sonhos e frustrações, haverá forças para o recomeço? Parado no tempo, a nostalgia do romance idealizado martiriza-o e rapidamente na mente – fez-se e se desfez cenas singelas de fugaz felicidade, lateja a audição diante da polifonia estridente dos carros, das buzinas, do andar das pessoas, da gurizada na esquina da igreja, e, assim, quase deitado e com o cotovelo foveiro apoiado no encosto do banco e com a cabeça inclinada, exercendo muita força ao cotovelo, ralando minuciosamente a pele no banco acimentado, o que importa isso tudo, se a irremediável dor fuminava paulatinamente aquele pedaço de carne tolo dentro dele? Doía em cada batida cardíaca, tremia a carne, a pálpebra dos olhos mexia-se rapidamente, formiguinhas sobem e descem nos pés umedecidos pela mistura do suor com farelos de terra nas sandálias, muitas morreram – tadinhas!... riscos esbranquicentos e foveiros feitos pelas unhas, ferindo de fininho a parte dos tornozelos, desgraçadas!.... ai meu Deus!... formigas, formigas, formigas... odeio formigas!... bate o pé no chão, se levanta, estende a perna ao banco, coça, coça, coçou! Matou muitas formiguinhas. Coitadas, havia culpa para elas se o cretino estava com o pé no formigueiro?
       Impaciente, levanta-se com fúria nos olhos, toma-se de ímpeto contra a situação, não mais das formiguinhas, e sim da maluquice de pensar no amor perdido. Este esteve nas mãos dele: seduzia-o, dominava-o, pirraçava-o, enganava-o, até que um dia perdera de fato. Subitamente lança-se a correr. Não sabia o porquê, mas quis sentir sequencialmente a força do vento na cara como bofetadas de boas maneiras. Ninguém jamais domou a dor de um amor perdido?! – pensa correndo afoitamente. Corre sem rumo, aliás a vida deixara sem destino! Subindo à Praça da Sé, cruzando a esquerda em direção ao Plano Inclinado São Gonçalves, passa ao torniquete, respira bem para fundo do peito, encostado na parede, com as mãos nos joelhos, todos olham para ele sem importância! Suado e fétido da emoção raivosa, emana dentro de si uma risada ironicamente estranha, tão estranha que começa a corroer os setores psíquicos. De resto, lembra da cena:  
          - Não me toque, não me beije, saia daqui, saia da minha frente, suma, desapareça!  - estericamente, berrou ao silêncio dele – Eu vi, eu li, discarado!
Apertando o braço dela, lágrimas de fel ardiam na face dele.  – Me solte seu cretino, você nunca me amou, nunca... e chorava desesperadamente,  - você ta me machucando, me solte! – Correu. Ele gritava – Maríliaaaaaa!!! Maríííííília!!! – Sem se importar com as pessoas pobrezinhas de sentimentos ao redor do ocorrido – uns olhavam censurando os dois, outros faziam pouco caso.
             Ela se foi.
Parado, descamisado, envolto em mágoas, caminhou. Sento-se num banco acimentado, vieram gatos a miar, atardecia, restara uns trocadinhos ganhos na sinaleira do Mercado Modelo. O tilintar das míseras moedas, ora numa mão, ora noutra, passavam as horas, menos a perniciosa dor que latejava na mente. Passaram alguns minutos, entediou-se, cometeu muitos homicídios às formiguinhas e sem destino, naquele início de noite barulhenta e friamente triste. Não a achou.
           Na Cidade Baixa, as lojas fechadas dão a impressão às ruas como galpão sinistramente poeirento e abandonado e, após o incidente, ele pensou no sujo papel, todo amassado e rabiscado com palavras e rasuras de um outro amor da Cidade Baixa.

Casa Grande, Tereza e Frederico

quinta-feira, 11 de agosto de 2011



A triste escadaria direcionava à porta velha do terceiro quarto da Casa Grande. Eram degraus desnivelados, uns maiores que os outros, cúmplices de talvez um crime mal resolvido. As marcas de sangue respingados na escada deixaram eternas provas invioláveis na pintura arcaica do século XV.  Subindo, no primeiro andar, um extenso corredor, cujos quartos enfileiravam-se ao lado direito e, em frente de quem sobe a escadaria, uma janela medieval, cujas cortinas desbotadas, sujas de rancor e desprezo.  As lajotas do piso do corredor eram corroídas pelos ferozes cupins e as maçanetas das outras portas enferrujadas pelo desprezo do abandono infame, agora não havia ninguém que quisesse habitar naquela Casa Grande, apenas Tereza, ou melhor, Mariza Tereza de Alburqueque. Uma senhora modestamente solitária, aliás, apenas o cachorrinho – Frederico – a fazia companhia com estressantes latidos, insinuando-lhe uma ânsia de libertação do sujo e malacabado canil.
- Cala boca, trem ruim nojento!
Sem sucesso, tentou limpar as mãos no avental podre de gordura que só o lavava nos finais de semana, sem direito de colocá-lo na quibôa. Entrou na cozinha, de lá do fogão, mexendo a gosma de farinha com água, espreitava Frederico, vendo-o se coçando e lambendo as ousadias.
- Cachorro desgraçado, nem sei ainda porque não te dei fim, seus dias estão contados, diabo do meu ódio! – Rabugentamente resmungava.
Da cozinha ao banheiro, não havia muita distância e olfativamente se discernia o fétido esgoto que se exalava da latrina. Na cozinha, um fogão, uma geladeira que servia de armário, e muitas moscas mantendo a sobrevivência, pousando nos restos de comida no canto da parede da porta do quintal. A sala era grande, e, ao mesmo tempo, se diminuía diariamente após que tornara depósitos de reciclagens e papelões e latinas de alumínio e sofás recauchutados e empilhados e lascados e os pneus atrás da emperrada porta marrom. Os quartos, já mencionados, situavam-se no primeiro andar – três apenas. O primeiro de casal, sem nada, sem sonhos, inabitável; o segundo, uma cama magricela, lastros quebrados e um criado mudo ausente de gavetas; o último, ficava trancado.
D. Tereza lavou a panela e os dois pratos – o dela e de Frederico – varreu a cozinha, bateu com o pé no chão, matando a infeliz barata cortejada há dias, limpou o solado da sandália na quina da pedra de Mármore da porta do quintal, quebrou a sandália. Descalça e com o lenço na cabeça, a saia cobria as chagas mal cicatrizadas das pernas, ora tirando lasquinhas das feridas, ora fazendo minar, ora infeccionando a raiva rotineira da Velha doca, D. Tereza.
Frederico, cachorro pútrido, sentia o sofrimento de D. Tereza, mas apenas lambia as partes íntimas e, com as unhas, coçava ferindo a orelha. Latia, latia, latia, e as grades do canil ficavam mais largas para passar. Tentava, tentava , tentava: botava a cabeça por baixo da greta, latia, tirava, latia, e pululava, rodopiando no pequeno espaço que tinha por direito, derrubando, se melando nos estercos e sem sucesso, foi para o canto dormir frustradamente.
- A prisão que você, miserável, quer se libertar, é mais fácil que a minha, que me encarcera no medo de viver!
Frederico, deitado dissimuladamente, sem balançar o rabo, olhava para Tereza na porta do quintal, invejando aquela gorda Senhora, fechava e abria e fechava lentamente os olhos e dormiu, sonhando com sua fuga pelas gretas.
D. Tereza fechou a porta do quintal e das possibilidades de fuga de Frederico - o pútrido vira-lata.

Parte I) Epitáfio Dias, surto.

terça-feira, 5 de julho de 2011





- O tempo é um modificador de circunstâncias.
- “Ouvi atentamente, mas não aceito. Era fatídico de mais para mudar do nada. Mudar de um dia para outro?! Preferir a modificação instantânea?! Se tempo modifica, porque não me modifiquei?” - Pensava Epitáfio.
Escritor, famoso no mundo virtual, belo nas palavras líricas, contundente na oratória cotidiana, homem com trajes arrojados à moda antiga; nada mais que camisa de botão listrada, calça jeans e sapato Samello. Fumante, grisalho, solitário, perspicaz, divorciado, funcionário público, filósofo, enfim, o que mais dizer?
Do outro lado da mesa: Olhar fixo e disciplinado, óculos quadrado, tarde findando-se entre a janela, pernas cruzadas, mão no queixo, cotovelo apoiado na mesa, apenas olhando.
- O problema não seria o que você conceitua?
- Não. O conceito que me perturba não é aceito pela maioria!
- E se o problema fosse resolvido com uma... talvez uma atitude só?!
Epitáfio se calou. Levantou-se do divã. Correu para janela. Afoito, perturbado, ensimesmado, ódio nas veias, as suas mãos bagunçam os restos de cabelo, e grita:
“Louca vida a que me pertence,
Quero o prazer de volta,
E, se me deixar levemente,
Brota neste coração idiota,
Meu mundo...”
Todo mundo que passava olhava, ouvia, se assustava, era Epitáfio. Surtou.
Desespero tomava conta da mente; Resurgiam os personagens, estavam perto, um sentado no braço do sofá, outro na porta querendo ir embora, e o Doutor Jones olhando para ele.
- Epitáfio, Domine-os!
- Seu mundo é seu, mas não pode obrigar que outros vivam nele!
- Cale essa boca... – Encolhido, agachado, no canto da parede, suado, camisa desabotoada, ofegante, alucinado, chorou Epitáfio. Aliás, amargamente chorou soluçando.
Não queria levantar daquele canto, estava menor agora, sobressaltado, porém tímido em si, esquisito, desgovernado.
- Para, para, para, pa... para, para... pa... ra..., CHEGA!!!
Dr. Jones abre o armário, olha para Epitáfio, não conseguiu decifrar o que desencadeava tanta amargura, tanta tristeza, tanta dor; e assim, pegou o comprimido, colocou-o em cima da mesa junto com o copo com água, uma receita prescrita, o celular, as chaves, a carteira de Epitáfio.
- Pegue a medicação e beba a água. Vai te fazer bem!
Epitáfio Dias, ser humano normal antes dos surtos tão normal que não queria sair do mundo que idealizava, tão normal que não queria se anular.
- “Dorme um pouco mais, amigo, que o tempo modifica até a nós mesmos” – Jones pensa consigo mesmo.